domingo, 24 de fevereiro de 2013

O ZEN, DOGEN E A MEDITAÇÃO - terceira e última parte



Dôgen e os caminhos do Dharma

Um dos traços fundamentais do ensinamento de Dôgen está relacionado ao jijuyu zanmai, ou seja, à capacidade intrínseca do ser humano para a iluminação. Na visão do mestre japonês, o Dharma está presente no íntimo de cada pessoa, mas sua vinda à luz depende de um exercício de prática. Assinala no Bendôwa que um "método misterioso" foi transmitido de Buda a Buda, que é aquele do sentar-se em zazen. Não há outro "portal" mais propício para a iluminação: trata-se "da verdadeira Via para se alcançar a iluminação" (DÔGEN, 2001a, p. 123-124 e 127) .

Na visão de Dôgen, não há como separar a prática da iluminação. O acesso à iluminação não se dá tanto por meio especulativo, mas sobretudo por intermédio de uma ação que se desdobra do fundo de si mesmo. Há em verdade uma unidade de prática e iluminação (shusho ichinyo) . O caminho dessa prática, quando orientado por um bom mestre, leva ao horizonte da iluminação. O simplesmente sentar-se, retamente orientado, favorece a percepção do "selo do Buda", e o olhar se desprende para captar em todas as coisas do universo uma presença iluminada (DÔGEN, 2001a, p. 127).
Para Dogen não há  Iluminação seaparada da prática

Os traços da prática do zazen foram particularmente desenvolvidos em três obras de Dôgen: Zazengi, Fukan zazengi e Zazenshin. Na primeira obra, Zazengi, Dôgen assinala que "a prática do zen é o zazen". Nesse livro, Dôgen aborda as condições propícias para a realização dessa prática: as condições do lugar e o estado mental desejado para o seu exercício. É necessário deixar-se habitar pelo "sem-pensamento" , rompendo com todos os laços ou vínculos que prejudiquem a concentração do praticante. Não há que ter objetivos, nem mesmo o de se tornar Buda. O zazen deve ser assumido em "alta consideração" (DÔGEN, 2001b, p. 43-44). Há que deixar "cair" corpo e mente, livrando-se de todos condicionamentos e "simplesmente sentar", sem nada esperar. 

No Fukan zazengi, que é o primeiro texto escrito por Dôgen (1227), ele aborda os princípios do zazen. Sugere que o praticante volte-se para o interior, mediante a prática do zazen, buscando o fundamento originário do caminho, ou da Via. Esse fundamento, ao contrário da opinião corrente em certa tradição budista, pervade todas as coisas. O samsara e o nirvana não são dimensões separadas, mas interpenetradas. O nirvana acontece no processo mesmo do samsara . E este "rosto originário" do Dharma não emerge senão quando o corpo e a mente deixam-se cair, e isso ocorre naturalmente, com o desdobramento da prática. Os aspectos formais e físicos do zazen são desenvolvidos por Dôgen em sua obra Zasenshin. Ele retoma ali o tema essencial do exercício do "não-pensamento" na prática do zazen: o desafio de "pensar o não-pensamento". 
Na prática do Zazen não deve haver nenhum desejo

Na prática mesma do zazen se dá a dinâmica da iluminação, não devendo o praticante deixar-se levar por nenhum desejo, nem mesmo o de tornar-se Buda . Trata-se de algo tão impossível como fazer de uma telha um espelho mediante seu polimento com uma pedra. Para Dôgen, há que ultrapassar o "fato imediato" que se apresenta aos olhos e saber buscar mais fundo, visando captar o mistério das coisas. Isso é para ele o significado mais largo do estudo do budismo. Seguindo a trilha aberta pelo mestre Nangaku Daie (677-744), Dôgen sinaliza a importância do exercício de gratuidade no zazen. Não há por que se preocupar com as "formas do sentar-se", mas voltar-se para o seu "princípio". Para tanto, a disposição essencial é a de "deixar cair mente e corpo" (DÔGEN, 2001d, p. 60-70).
Zazen é " deixar cair mente e corpo"

Essa expressão "deixar cair o próprio corpo/mente" (shinjin datsuraku), tão citada por Dôgen, tornou-se muito famosa, traduzindo de forma límpida e sintética a essência de sua reflexão sobre o budismo. A forma mais precisa onde ela aparece na obra deste autor é no Genjo Koan: "Aprender o budismo é aprender a si mesmo; aprender a si mesmo e esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se de si mesmo é ser despertado para a realidade. Despertar-se para a realidade é deixar cair o próprio corpo/mente e o corpo/mente dos outros" (DÔGEN, 2001e, p. 180) .

A dinâmica desse precioso aprendizado envolve a presença de um bom mestre, que possibilita abrir o caminho da transmissão correta. É um "aprendizado de desaprender", como tão bem mostrou Fernando Pessoa em seu Guardador de rebanhos. Há que romper a percepção da realidade que se funda na perspectiva de um "eu permanente". Não há o que fazer com a ideia de um "eu permanente". Como sublinha Dôgen, "a realidade não se baseia sobre o nosso eu" (DÔGEN, 2001e, p. 180). O exercício do zazen faculta a emergência de um si mesmo que nasce a partir da morte de um eu egocentrado. Esse eu "deixa-se cair" para fazer emergir o verdadeiro si (jiko). Trata-se do si real ou universal, habitado pela realidade da vida. O passo essencial da prática do zazen é facultar a emergência deste "si" que inclui toda coisa (UCHIYAMA, 2006, p. 38-39) .

Tem razão Taisen Deshimaru quando assinala que o zazen favorece um "alargamento da consciência e o desenvolvimento da intuição". Não é uma prática que desloca o sujeito da vida e da história, mas provoca, antes, um adentramento singular em sua concretude. É uma técnica que possibilita atenção permanente, concentração viva "sobre cada instante da vida" (DESHIMARU, 1981, p. 14 e 30).
Há que salientar, seguindo as pistas abertas por Dôgen, que a realização da Via ocorre também por caminhos inusitados, que não se restringem à prática específica do zazen. É uma realização que se estende para todo o universo, pois sua luz emana de toda parte. Está presente no golpear e sibilo do vento e no misterioso som de um sino. Todo fenômeno é para Dôgen portador da possibilidade de iluminação (DÔGEN, 2001a, p. 129-139) .

Uma espiritualidade do cotidiano
A espiritualidade Zen acentua o valor da experiência da vida

Toda a espiritualidade zen acentua com vigor o valor e o significado da experiência da vida. Mesmo reconhecendo a relevância imprescindível da prática do zazen, a base essencial onde habita o múnus do Dharma é a vida mesma, em toda a sua tessitura. Em rica reflexão de Uchiyama Roshi, Como cozinhar a vossa vida, ele aborda o tema do "apaixonar-se pela vida". Reconhece que na tradição budista Mahayana a vida é o que há de "mais essencial" (DÔGEN; ROSHI, 1986, p. 67).

Dôgen sublinha a todo tempo a importância do cuidado, delicadeza e atenção para com o presente em cada um de seus instantes. Há para ele uma relação de proximidade entre a natureza e o despertar. Os diversos capítulos ou fascículos do Shôbôgenzô, bem como os poemas recolhidos no Sanshodoei , expressam esse "profundo amor" do mestre zen pela natureza. Alguns títulos da grande obra de Dôgen expressam essa presença: Tsuki (a lua), Shunju (primavera e outono), Katto (cipó), Hakujushi (cipreste), baika (flor de pêssego), udonge (a flor de udumbara) keisei sanshokoku (a voz dos vales, as formas-cores das montanhas), sansuikyo (montanhas e rios como sutra).

Há todo um rico aprendizado favorecido na tradição zen de desocultar a presença do invisível, ou do mistério, no âmbito mesmo do visível e poder captar a ressonância essencial do universo. Mas quando, por exemplo, Dôgen fala em natureza, a sua percepção é distinta daquela usual no Ocidente. O termo vem carregado de uma clara conotação religiosa. Não há como deslocar a compreensão de natureza da experiência do despertar. O termo natureza vem desvelado como "a realidade concreta percebida a partir do despertar, o mundo mesmo do despertar" (FAURE, 1987, p. 23). Sob essa perspectiva, Dôgen pode cantar num de seus poemas do Sanshodoei: "O eco dos vales e o grito dos símios nas alturas não fazem senão recitar sem cessar as Escrituras" (FAURE, 1987, p. 25) . Na verdade, toda a realidade natural, envolvendo as montanhas, rios e toda a imensidão da terra constituem "o oceano da natureza de Buda". Ou ainda, como assinalado no livro Hotsumujôshin, em cada poeira "existem milhares de escrituras santas e um número incomensurável de despertares" (DÔGEN, 2005a, p. 173)
A prática de Meditação é  um exercício de aperfeiçoamento do olhar

Essa percepção profunda da realidade natural pressupõe, porém, um trabalho da interioridade, um exercício de aperfeiçoamento do olhar. Não são todos que conseguem captar a ressonância do universo, mas aqueles que passaram por uma transformação interior, rompendo com a perspectiva egoica e possessiva, deixando-se envolver pela "experiência direta", que antecede toda distinção entre sujeito e objeto (FAURE, 1987, p. 26).

Em esclarecedora obra sobre a filosofia do budismo zen, Toshihiko Izutsu aborda esta questão do "Ver" na tradição zen. Com o recurso da visão ordinária, que se limita ao fato imediato, nem sempre se consegue captar o "outro lado" das coisas, ou o seu mistério implícito. É quando o olhar se perde nas coisas sem, porém, reconhece-las. Nem sempre a visão daquilo que está diante dos olhos favorece a percepção de sua profundidade. Como assinala Izutsu,
"para poder ver numa só flor uma manifestação da unidade metafísica de todas as coisas, não só de todos os denominados objetos mas também do sujeito observador, o ego empírico deve ter sofrido uma transformação total, uma completa anulação de si mesmo – a morte de seu próprio ´eu' e seu renascer numa dimensão de consciência totalmente distinta" (IZUTSU, 2009, p. 20-21).
Bodhidharma: uma imensa vacuidade

Verifica-se que na tradição zen não existe nada senão a realidade do mundo fenomênico. Não se fala ali de uma ordem de coisas transcendental, que se destaca do espaço e do tempo. O que há é esse mundo sensível e concreto, na sua espessura vital. O pensamento de Dôgen reflete essa dedicada atenção ao fluxo da existência cotidiana, sem que ocorra um acento numa transcendência específica. Há algo de "singularmente profano" e "absolutamente cotidiano" no zen por ele apresentado. Relata-se que Bodidarma, ao ser indagado pelo imperador Wu, sobre o traço de santidade presente no ensinamento do budismo, respondeu com tranquilidade: "Uma imensa vacuidade, e nada o que fazer com a santidade" (COOK, 1981, p. 59). Em ilustrativo capítulo do Shôbôgenzô, dedicado ao tema da vida cotidiana (Kajo), Dôgen assinala que os grandes mestres e patriarcas do zen simplesmente "comem arroz e bebem chá". Não há nada de muito "nobre" na vida desses grandes homens: "O chá ordinário e as refeições frugais de sua vida cotidiana constituem os pensamentos daqueles que despertaram e as palavras dos patriarcas" (DÔGEN, 2007, p. 306).
O olhar do Zen vê a montanha e o rio sob uma nova perspectiva

O que o zen, porém, pontualiza é que o mundo fenomênico não se reduz à trama das coisas sensíveis que se apresentam ao ego empírico ordinário. Ele pode estar vitalizado por uma particular espécie de poder dinâmico capaz de redimensionar o ver (IZUTSU, 2009, p. 33). Enquanto o olhar ordinário, essencialista, só consegue ver a montanha como montanha e o rio como rio, o olhar zen passou pela experiência do "abismo do Nada", pela experiência fundamental do desapego. Para além da superfície fenomênica, ele consegue, agora dinamizado por distinta experiência, captar a mesma montanha sob nova perspectiva: "A montanha é de novo montanha", ou ainda: "A montanha é simplesmente montanha". O olhar vem revigorado a partir de seu "renascimento desde o próprio abismo do Nada", sinalizando a presença de um indivíduo que foi completamente transformado na sua estruturação interna. Trata-se, segundo Dôgen, de um olhar que passou por uma atividade específica (gyoji), pontuada por um modo de conceber e viver a própria vida cotidiana segundo a espiritualidade zen.
Um dito tradicional do mestre zen Ma-tsu (709-788), muito repetido por Suzuki, indica que o "zen é a consciência cotidiana". Todas as coisas "cantam a verdade", também sinaliza Dôgen. Não há, portanto, que sair do mundo para gozar da experiência espiritual. Se alguém quer, de fato, penetrar a verdade do zen, indica Suzuki, com base em Pen-hsien, deve fazê-lo quando está de pé ou andando, dormindo ou sentado, na palavra ou no silêncio e em meio aos afazeres do trabalho cotidiano (SUZUKI, 1993, p. 92-93).
Acolher o cotidiano é um dos maiores desafios do Z|en

Acolher o cotidiano na sua elementar maravilha é dos mais importantes desafios apresentados pela tradição zen, e por Dôgen em particular (TOLLINI, 2012, p. 158-160). A percepção da novidade das coisas em cada singular momento ou instante é favorecida pelo olhar que passou por processo dinâmico de mudança. É um olhar capaz de captar a essencial gratuidade (mushotoku) das coisas. O mestre Kodo Sawaki (1880-1965) dizia: "Os homens acumulam conhecimentos, mas eu penso que o fim último seja poder sentir o som dos vales e olhar as cores da montanha" (FAZION, 2003, p. 101). A autêntica meditação não se dá no distanciamento do instante presente, mas no adentramento de sua espessura. Ela envolve uma atenção vigilante aos pequenos detalhes do cotidiano, com a mente aberta e desimpedida. O zazen não se dá somente num tempo específico e num lugar privilegiado, mas acontece em todo momento, iniciando-se com o abrir dos olhos pela manhã e finalizando com o seu fechamento à noite, de modo que todas as atividades realizadas no dia sejam tradução viva de uma prática (COOK, 1981, p. 25).

 Nirvana e Samsara são interdependentes
Em outro fascículo de seu Shôbôgenzô, Zenki, Dôgen aborda o precioso tema do instante. Para ele "cada instante é um instante de plenitude". Questiona duramente nessa obra aqueles que ensinam que o alcance do nirvana se dá com a saída do mundo ordinário. Sublinha enfaticamente que os dois mundos, do nirvana e do samsara necessitam-se mutuamente. Na verdade, assinala que o nirvana se opera no samsara (DÔGEN, 2011, p. 64-67). Na visão de Dôgen, "o acontecimento por excelência é a vida", a vida que se vive em cada um de seus instantes, e por meio da qual todos podem celebrar a alegria de estar aí. O despertar espiritual, assinala o mestre zen, não é nada mais que a tomada viva de consciência deste instante presente, nas suas misteriosas malhas de enigma, surpresa e gratuidade. Só há plena consciência, adverte Dôgen, quando a consciência consegue abraçar todas as coisas em cada instante (DÔGEN, 2011, p. 75-76).

O organismo privilegiado para acolher essa pulsação de vida que se acomoda em cada instante da vida cotidiana é, para Dôgen, o coração (shin – kokoro). Mas para que ele possa "ressoar com a multidão dos seres do universo" , necessita de esvaziamento, de destacamento dos traços do "pequeno eu" que impedem o abraço universal da acolhida e da compaixão. É o coração liberto que coloca o ser humano em disponibilização para ouvir com alegria o "canto das coisas", ou na expressão de Dôgen, o "sentimento e a emoção das flores" (DÔGEN, 2007, p. 348 e 353).

Conclusão

Em sua obra de introdução ao zen budismo, Suzuki aborda a questão de ser ou não o budismo zen um misticismo. Com o humor típico dos grandes mestres, ele indica que o zen "é um misticismo a seu próprio modo". Sinaliza que ele "é místico no sentido de que o sol brilha" ou "que uma flor desabrocha". Reconhece que o traço de religiosidade habita a presença de uma camélia em flor, em mesma proporção que sua evidência no ato explicitamente religioso de se prosternar diante dos deuses ou outras atividades rituais (SUZUKI, 1999, p. 60 e 65). Trata-se, em verdade, de uma espiritualidade fundada na experiência mais singela do cotidiano. Há muito de humano, demasiadamente humano, na espiritualidade zen. É o que esse artigo buscou sublinhar de várias formas. A tradição zen budista vive a espiritualidade no tempo, sem deslocar a experiência da iluminação para um além incognoscível, ou um nirvana impalpável. É neste "tumultuado" mundo do samsara que se dá a oportunidade de iluminação. É por isso, como tão bem mostrou Francis Cook, que o budismo convoca a todos para uma atitude de observação da vida, com delicadeza, clareza e atenção, visando encontrar uma liberdade única e um bem estar partilhado, sempre nesse espaço dado e nas condições precisas que constituem o edifício da vida humana (COOK, 1981, p. 56).

Fim 

Autor: Dr. Faustino Teixeira - UFJF

Recebido por email
Sou grato a Deus, ao Dr. Faustino e ao Akira pelo envio deste maravilhoso trabalho
Alsibar

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